Rouge- Beatriz Ubarana.  

Posted by Jean Leal


-De Beatriz Ubarana


Não sei se foi a guerra, que naquela época batia de forma tão rude em nossas portas. Talvez tenha sido o fato de estarmos em lados diferentes, o fato de termos feito escolhas completamente diferentes. Mas agora tudo o que sei é pensar nas formas, nos sorrisos e nos olhares.
Gostava de tê-la na minha cama suja e mofada, gostava de vê-la arrumar-se apressadamente para voltar para casa e retornar à sua vida perfeitamente falsa. Gostava dos sussurros que pareciam tão mudos em contraste aos gritos de medo e bombardeios fora da janela. Mas gostava ainda mais de quando acordava durante a noite e a encontrava dormindo, os cabelos tapando seus contornos de forma exuberante. Ela nunca se abraçou em mim ao dormir, nunca dormiu em meu peito e nunca conversamos docemente ao acordarmos.
Eram apenas algumas noites em que nos víamos, noites em que nossas almas buscavam-se incansavelmente.
Nunca foi um relacionamento sentimental, e nunca entendi quando havia começado. Muito menos como havia chegado àquele ponto. Não foi um relacionamento sentimental. Não para ela, disto eu tenho plena certeza. Ela era dele, eu sentia isso cada vez que nossos toques cessavam. Sempre foi dele, afinal.
Mas isto não impediu de perder-me naquele mar vermelho que eram seus cabelos. Nunca me impediu de mergulhar naqueles olhos que não cansavam de me encarar de forma real. Não eram olhares carinhosos, e nem ao menos continham ódio em seu brilho. Eram apenas olhares, olhares em sua mais primitiva forma. Ela apenas olhava-me e eu correspondia, da forma que achava mais certa, da forma que achava mais fria.
Naquela época não tinha consciência, eu simplesmente não pensava em todas as conseqüências que aquelas coisas me trariam. Era apenas um homem recém feito, que tinha uma mulher boa demais em minhas mãos. Era apenas uma pessoa assustada demais com o rumo que a minha vida havia tomado.
Às vezes ela me surpreendia com um simples sorriso antes de virar-se para o lado e fingir que dormia. Deus, ela não podia achar que eu era tão idiota a ponto de não saber que ela ficava olhando para o nada até que o sono viesse. Era isso que acontecia comigo, pelo menos depois de cansar-me de me afogar no mar de fogo que caiam em cascatas pelo seu ombro e costas, ou então perder-me contando cada sarda que ela tinha nas costas incrivelmente pálidas.
Mas estes sorrisos me encantavam de forma diferente. Era intenso e parecia que ela percebia o quanto aquilo me afetava. Sim, ela sabia o quanto tudo nela me afetava, e aproveitava-se muito bem disso.
Sabia que, por bem ou por mal, aquilo era tão inevitável como o surgir do sol em uma manhã de verão. Ela, e apenas ela, era o verão.
Seus hábitos eram de certa forma, curiosos para mim. Não entendia todo o ritual que ela fazia apenas para vestir sua roupa, quase sempre de tecidos felpudos. Sempre pedia-me para ajudá-la a arrumar alguma peça, por menor que fosse. Mas havia um ritual que ela não me deixava ajudar, como se fosse um segredo, uma impureza.
Passava delicadamente um batom vermelho nos lábios, olhava-se no espelho, mas não se enxergava. Olhar e enxergar, realmente ver. Existe uma diferença tão grande nisso. Mas era tudo automático, como um alcoólatra que bebe o milésimo gole de seu absinto em uma única noite. E era exatamente daquele jeito que me deixava, como um alcoólatra que havia bebido garrafas e mais garrafas de sua bebida preferida, mas mesmo assim não ficava contente. Precisava dela cada vez mais. Ainda preciso.
Era fascinante levantar-me e a puxar rudemente, manchando toda sua boca e contornos; manchando toda a minha boca. Éramos, ao mesmo tempo, rudes e delicados; impulsivos e pensativos. Completávamo-nos, de certa forma.
Meus instintos me mandavam manchar qualquer parte do corpo dela que achasse, com seu próprio batom. Na maioria das vezes meus instintos também me mandavam prensar seu corpo contra a parede mais próxima.
Ela nunca se despedia. Apenas cortava o contato entre nós, pegava sua bolsa e ia embora. Diferente de qualquer outra mulher; com as outras era eu que costumava fazer isso, as abandonando com alguma palavra fria. Mas ela me deixava quente. E chegava a odiá-la por me deixar na mesma situação das inúmeras mulheres que já deixei sozinhas depois de uma noite inteira juntos.
Nunca cheguei a descobrir seus sonhos e suas ambições, éramos apenas nós; sem sobrenomes ou rivalidades infantis. Acho que ela não era feliz, não ao lado do herói. Não me parecia ser feliz ao atravessar a porta do meu quarto e ir embora, de volta para sua família. Mas ao meu lado, ao lado do vilão, ela parecia ao menos se sentir viva. Isso foi meu único conforto por muito tempo.
Tempo que só começou após ela despedir-se. Primeira e última vez que ela o fez.
”Adeus” Sem sorriso irônico, sem nem ao menos um sorriso real. Apenas com o seu olhar, este sim era o crucial.
Ainda posso sentir nossos olhares perfurando-se. Acho que sempre soube que aquela seria a última vez, ou por que outro motivo ela se despediria de mim? Deixei-a ir, não havia mais nada a fazer..
Seu batom , que desta vez não foi borrado e continuava impecavelmente bem colocado, lembrava-me fatidicamente do último beijo nunca dado.
No fim foi assim, apenas lembranças de tudo o que ocorreu, e de todos os toques que desperdicei em seu corpo bem esculpido, de todas as caricias que deixei para depois, de todos os beijos que nunca dei.
O que mais me fascinava nela era a forma como ela me deixava inebriado com a sua mera presença. Era a forma como ela simplesmente ia embora, com os lábios borrados de batom vermelho, deixando-me pequenos vestígios de que aquilo era real e não uma espécie de teatro mental da minha cabeça doentia. Doentia por ela, por ela e todas as tonalidades de vermelho que eu encontrava nela, nos seus cabelos, em seus lábios e em seus momentos.

This entry was posted on 20 de jun. de 2009 at 22:08 . You can follow any responses to this entry through the comments feed .

1 Bondosas pessoas que comentaram

ooooown, fofinho.
Realmente gosto desse texto, algo que preste que escrevi.
:*
voltem a fita.

20 de junho de 2009 às 22:18

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